quarta-feira, 2 de junho de 2010

Amor

''José, para aonde?"
a Tibúrcio Marques, meu avô e mestre
Helena acordou com uma leve sensação de estar pisando em nuvens. Como se algo significativo houvesse ocorrido sem que ela soubesse.
Do que se lembrava da noite passada era muito pouco; assistindo a uma série antiga de televisão e bebendo uma dose de whisky misturado a água. Deveria ser esse o motivo da perda de memória repentina.
Tomou um banho. Bebeu um café frio e sem açúcar como sua própria vida.
Helena, em suma, era uma mulher dessas de se olhar a esquina e passar por desapercebido. Morava em um apartamentozinho térreo alugado no centro da cidade.
Trabalhava vendendo planos de saúde em um outro bairro, perto do que morava. De prazeres, pelo menos uma vez ao mês dava-se o luxo de pintar as unhas de vermelho-escarlate e comprar duas trufas. Das trufas, comia as duas ligeiramente com temor de serem rapidamente roubadas ou desaparecerem sem mais nem menos, das unhas vermalhas-escarlate ruia-as para economizar acetona; trabalho inútil, enfim: dez contos levados em vão por puro luxo.
De medos, jurava por pé junto ter pavor a galinhas. Por piedade não era capaz de comê-las.
Hoje, diferente do normal tomaria um ônibus à Av. Derby; iria a uma consulta ao dentista.  Desses dentistas populares que se paga por cada consulta. A tempos temia mas não poderia mas adiar.
Chegando lá, registrou seu nome e sentou-se num banco à espera. Como não tinha TV ligada e esquecera de pegar o jornal; tomou uma revista e passou a ler.
Com um tímido espanto observou várias páginas em branco, mas continuou folheando-as. Retornou a capa para se certificar de que era uma revista nova, pois o conteúdo poderia ter sido apagado com o tempo. Mas não, a revista tinha acabado de ser entregue e posta na prateleira; estranhou, mas continuou, página por página, observava também algumas folhas contendo umas figuras abstratas, em tons vagos, outras com desenhos grosseiros, círculos formados ao risco forte de caneta. Mas continuou folheando, absorta.
Sua mão começava a suar, então. Helena. À medida que passava as páginas tinha a impressão de que iam aparecendo mais páginas, o que lhe dava mais vontade de achar sequer uma palavra. Helena.
Seu coração palpitava como um grande tambor. Nunca lhe tivera ocorrido uma situação assim. Helena.
Pálida e sóbria. A saliva não vinha à boca, os olhos começavam a arder, e as páginas sempre brancas, nuas...
Bateu-lhe a ideia de arremeçar a revista, de arraca-la folha por folha, mais foi incapaz de faze-lo.
Agora as páginas começavam a se rasgar, com a força as que passava, com uma súbita voracidade de alguma coisa. 
Era como se aquela revista representasse muito mais do que uma simples revista. Era como se passar aquelas páginas fosse algo vital para sua sobrevivência. Nunca lhe ocorrera nada parecido. A revista não era apenas aquilo, era muito mais, como se fosse a vida de Helena, a revista era sua própria vida. Helena
As páginas em branco representavam um passado morto, nú. As folhas rabiscadas, uma adolescência frustrante.
E nada de palavra, e nada de imagens que representassem de fato nada 
e nada de momentos em sua vida. Sua vida era um branco Helena?
Após  se acalmar continuou a folhear , agora como se assistisse  toda sua trajetória  num filme.
Chorou absorta toda sua vida não vivida, chorou os momentos que poderiam ter acontecido, chorou sua felicidade superficial, chorou sua  estabilidade monótona. Chorou os amores que não teve, chorou os amigos que perdeu. Chorou a penumbra que lhe habitava a vida. Chorou lágrimas póstumas.
 Helena chorou absorta.
Tudo fazia sentia, então. Pôs a revista em seu colo, arrancou boa parte das folhas, e as que sobraram, com uma caligrafia trêmula passou a escrever, desenhar cada página, dar vida a sua vida. Helena.
Amava todo o instante de sensações que lhe viam.
Amava, então a revista.
Amava o futuro próspero que estava por vir.
Amor, o que lhe faltava a vida.
Tomou a revista em sua bolsa, respirou fundo. Sentia-se como nunca. Levantou da cadeira como quem acorda de um sonho bom pisando em nuvens. Helena
Despiu-se de tudo e de todos, 
despiu-se dos medos, das limitações, dos pecados, 
Sorria como quem acaba de voltar a uma consulta ao dentista
Absorta, sorria à vida.
Helena.

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