segunda-feira, 31 de maio de 2010

A ARTE DE NÃO FAZER NADA

Dizem-me que mais de metade da humanidade se dedica à prática dessa arte; mas eu, que apenas recente e provisoriamente a estou experimentando, discordo um pouco da afirmativa. Não existe tal quantidade de gente completamente inativa: o que acontece é estar essa gente interessada em atividades exclusivamente pessoais, sem conseqüências úteis para o resto do mundo. Aqui me encontro num excelente ponto de observação: o lago, em frente à janela, está sendo percorrido pelos botes vermelhos em que mesmo a pessoa que vai remando parece não estar fazendo nada. Mas o que verdadeiramente está acontecendo, nós, espectadores, não sabemos: cada um pode estar vivendo o seu drama ou o seu romance, o que já é fazer alguma coisa, embora tais vivências em nada nos afetem. E não posso dizer que não estejam fazendo nada aqueles que passam a cavalo, subindo e descendo ladeiras, atentos ao trote ou ao galope do animal. Há homens longamente parados a olhar os patos na água. Esses, dir-se-ia que não fazem mesmo absolutamente nada: chapeuzinho de palha, cigarro na boca, ali se deixam ficar, como sem passado nem futuro, unicamente reduzidos àquela contemplação. Mas quem sabe a lição que estão recebendo dos patos, desse viver anfíbio, desse destino de navegar com remos próprios, dessa obediência de seguirem todos juntos, enfileirados, clã obediente, para a noite que conhecem, no pequeno bosque arredondado? Pode ser um grande trabalho interior, o desses homens simples, aparentemente desocupados, á beira de um lago tranguilo.De muitas experiencias contemplativas se constrói a sabedoria, como a poesia. E não sabemos - nem eles mesmos sabem - se este homem não vai aplicar um dia o que neste momento aprende, calado e quieto, como se não estivesse fazendo nada.
Cecília Meireles, O se diz e o que se entende

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