segunda-feira, 31 de maio de 2010

Conselhos literários de Carlos, meu pai

Pela vida afora, meu pai, que nunca teve intenção de ser professor de nada, me tem dado, quase sem querer, alguns conselhos, que me são de utilidade cada vez que improviso alguns passos na literatura. O primeiro é antigo, de quando eu tinha quatro ou cinco anos e, um dia, sentada no chão, comecei a cantar [...]. Meu pai gostou da brincadeira e, quando soube que eu mesma a inventara, anotou minhas palavras e explicou-me, de maneira singela, que eu acabara de compor um poema. Fiquei surpreendida, porque, até então, nessa matéria, só conhecia os versinhos que decorava no jardim da infância. Então poesia era isso, essa repetição cadenciada, essa ida e volta rítmica? Esses nomes de flor que diziam muito mais do que significavam? [...]. Mais tarde, já no colégio, quando tinha que fazer as primeiras redações e colava um cromo cheio de purpurina no caderno, ele me aconselhou a descrever primeiro a cena ilustrada (uma galinha rodeada de pintinhos, uma casa de campo) e só depois construir a história que quisesse. Fiquei sabendo, assim, que o primordial numa página escrita é a objetividade. Estando no curso de admissão, escrevi, certa vez, que, assustada, eu me deitara "enroladinha como uma bola". A severa professa modificou a frase para "enrijecida como um feixe", e, como essas palavras não faziam parte do meu vocabulário de 10 anos, tive a sensação de que escrever direito era escrever difícil. Meu pai, a quem mostrei a correção, desfez-me a ilusão, indicando-me que é exatamente o contrário: no caso, minha comparação, simples e natural, era bem mais expressiva do que a de dona Mirtes. A lição foi dupla, pois descobri também que os professores não são infalíveis. Ensinou-me também a usar o dicionário sem preguiça e com prazer, [...] a não ser exigente demais comigo mesma [...]. E sobretudo a evitar a prolixidade: - Escrever é cortar palavras — ele vem me repetindo sem cessar e com razão. 
É por isso que, na esperança de ser capaz, pelo menos hoje, de seguir esse conselho difícil, vou ficando por aqui.
(Maria Julieta Drummond de Andrade. Jornal do Brasil. Supl. 'Drummond', p. 10.)

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